O que sobrou foi uma xícara. O que sobrou foi uma xícara que recebe uma sombra clara todos os dias quando são seis da manhã. É sempre uma nuvem que passa pela janela, espantando os pequenos pássaros lá de fora. E a xícara, sobre a mesa vermelha com pés enferrujados, de branca fica cinza por alguns minutos.
Quando ainda desperto, quando ainda sobrevôo meus pensamentos tentando quebrar o sentindo de que tive bons sonhos, do que é realidade e ilusão, lembro-me imediatamente que a xícara está lá, como se ela me esperasse para ficar cinza. Calço meus chinelos e desço as escadas ainda sonolenta, ainda mal vestida, ainda despenteada. Sinto um cheiro de café, sinto o gelado das paredes com aqueles quadros feios que minha mãe gosta. E a xícara está lá.
Olho pra ela como se não a visse, como se ela fosse qualquer objeto transparente, translúcido, desinteressante, mas é tudo ilusão porque eu olho, verdadeiramente, como se fosse possível quebrá-la, com se fosse possível com a força do meu pensamento jogá-la contra a janela. E então chega a nuvem e forma aquela sombra. Aquela sombra maldita que a deixa tão mais sólida, tão mais densa, tão mais você.
Nesses longos minutos de sombra na xícara é como se eu também recebesse toda aquela sombra, como se eu, nuvem tenra, de repente fosse nuvem robusta (coisa que eu não sou). E assim, quando é, sinto ser possível mover uma tempestade, sinto ser possível controlar raios, trovões, relampagos, você.
Sento na cadeira velha, aquela que continua a machucar minhas costas. Sento na cadeira velha em direção à xícara. Eu poderia escolher outro lugar à mesa, mas não consigo, não devo, ou é alguma coisa que manda em mim e eu obedeço. Sente-se de frente para xícara, sussurra em meus ouvidos.
Se fosse xícara gente. Se fosse você xícara. Humano, carne e sangue, pequena, frágil, sem sentido. Talvez se sentisse bem por ser xícara, por ser humano, por receber uma pequena sensação do que é a vida (a sombra e a luz) e contentar-se com isso, apenas com isso.
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