Este texto foi escrito para estudantes e interessados em geral que se iniciam nos estudos de textos de Filosofia. Não raro, pessoas me perguntam: “por que os textos de Filosofia precisam ser sempre difíceis?” Respondo que nem sempre é assim, mas que a dificuldade, muitas vezes, tem a ver com a distância temporal que separa autores e leitores, e, por isso, poderia funcionar como um convite ao mergulho no universo e no tempo dos escritores. A própria ideia de dificuldade é tratada por importantes autores contemporâneos. Cito aqui George Steiner, sobretudo o texto On difficulty, que, embora trate da dificuldade na compreensão da poesia, serve como meu guia nas considerações que se seguem a respeito de textos filosóficos.

    “E se a compreensão do que vale a pena viver tiver como pressuposto o colapso e a invalidação precisamente daquele mundo no qual se pretendia continuar vivendo?”

    Yu Tsun, Máximas e reflexões

    A ideia de dificuldade

    Considerem a seguinte situação: quando entramos em um transporte público e, por acaso, passamos a ouvir duas pessoas conversando sem entender, jamais, em sã consciência, interrompemos para perguntar do que tratam, o que nos permitiria continuar acompanhando melhor a conversa alheia. Isso seria, no mínimo, insensato, temerário e até desrespeitoso. Mesmo não agindo assim, ao “tomarmos o bonde andando”, não nos sentimos derrotados ou responsáveis por enfrentar a dificuldade de compreensão naquela circunstância. Sabemos que aquelas pessoas não estão falando com a gente, mesmo que tenhamos a franca impressão de estejamos presentes diante delas.

    No caso da leitura, não raro, acontece algo semelhante. Não basta estar com o livro sob os olhos (o que é um privilégio importante, mas nunca suficiente) para que as histórias e as ideias se revelem a nós. Há livros que são didáticos, generosos e colocam o leitor na posição cômoda de assistirem com facilidade a todos os termos de constituição da trama e de suas consequências. O leitor é produzido (e, nesse caso, um tanto mimado) sem se dar conta. E acaba, muitas vezes, se acostumando com isso. Nem todos os livros, no entanto, são assim, por isso há aqueles que exigem um leitor menos passivo, mais informado, mais interessado, mais preparado e, por isso, uma espécie de coautor em trabalho ativo de elaboração, de análise, de interpretação e de permanente indagação e diálogo. Uma outra disposição, portanto, é necessária nesses casos.

    A ideia de dificuldade está diretamente vinculada à mudança de registro com a qual um certo tipo de leitor se depara. Sobretudo o leitor do primeiro tipo de livro, didático e generoso, quando passa a obras do segundo tipo, ou seja, obras que solicitam engajamento, participação ativa e dedicação. Evidentemente, a adesão ou não depende do interesse e não precisa estar necessária e estritamente ligada ao assunto, mas, algumas vezes, à riqueza das possibilidades de descobertas, de conhecimentos, de belezas nada evidentes e menos ainda superficiais de exposições que exigem mais paciência, mais empenho, mais conhecimento, mais esforço e mais persistência.

    O interesse, sabemos, é uma condição dinâmica, variável, íntima, histórica e socialmente condicionada, por isso pode ser inventada e reinventada com benefícios progressivos, mas igualmente pode permanecer ancorada, enrijecida e negligenciada se os determinantes da estagnação vencerem a disposição e o desejo de autonomia. O medo de errar gesta o terror da dificuldade e, por isso, o afastamento de qualquer risco. Preferimos não errar, na ilusão de que o aprendizado pudesse prescindir do erro, do engano, do equívoco. Ao contrário, até muitos considerados e famosos acertos por séculos foram inicialmente erros necessários reconsiderados sob novas perspectivas, novos usos, ou seja, novos horizontes. Muitas dessas também ficaram no próprio engano, mas isso não as desqualifica. Antes, são parte dos passos que se pode dar no sentido de alguma segurança sobre as posições de entendimento a que se chega. O erro é tanto parte de qualquer verdade quanto qualquer outro conteúdo que se atribua à veracidade do conhecimento obtido. Não dispomos de nenhum protocolo ou catálogo de interesses e, se existisse, seria para tornar ainda mais difícil o encontro com os nossos próprios interesses, mas dispomos da capacidade de espanto diante das descobertas e da invenção a partir dos nossos projetos. Para isso, no entanto, é preciso enfrentar as dificuldades não como obstáculos, mas como experiências de passagem cuja travessia constitui em nós chaves de inteligibilidade renovada. E talvez tão mais solidamente nossas quanto mais árduas as conquistas demandam.

    A dificuldade inicial (ou mesmo duradoura, em alguns casos) durante a entrada em um texto mais complexo talvez possa ser comparada ainda ao momento de enfrentar a circunstância adversa da arrebentação das ondas, a partir da praia, com uma embarcação com a qual se tenta alcançar o alto mar. Encarado com persistência, força e paciência o momento da dificuldade, atinge-se a chance de gozar com os novos horizontes. Do contrário, sob o medo antecipado, não enfrentamos o que é apenas uma etapa de acesso a condições mais interessantes para o pensamento. Não há sentimento de incompetência que resista ao entusiasmo de poder oferecer-se a descoberta de uma inteligibilidade inédita, de participar em uma discussão milenar, de receber ideias e concepções da história do pensamento cuja atmosfera social jamais poderíamos, de outro modo, conhecer ou conceber. Ademais, a hipótese de (quase) tudo compreender é sempre quimérica e, pior, impeditiva de que, por exemplo, se instaure o necessário passo a passo do entendimento por camadas, por tentativas, por persistência e por repetições de leitura, pelo paciente trabalho de recolher informações subsidiárias (mas não apressadamente), de desvelar gradativamente os níveis de significação, as possíveis decorrências e formular hipóteses de interpretação sem as quais não há sequer chance de reivindicar uma decodificação mínima do texto ou do assunto em questão.

    A solução da dificuldade como enigma talvez se resolva em parte pelo fato de a considerarmos mais como um convite, como um núcleo de descobertas raras, mais do que como um agravo, uma ofensa ou um sofrimento. O convite é para nos alçarmos ao patamar da capacidade de interlocução. Isto é, a nos permitirmos o tempo necessário de trabalho de entendimento, de colheita de informações e de treino em domínios discursivos específicos para então estabelecer uma condição de leitura mais ativa, mais corajosa e por isso mais fértil no projeto de encontrar-se no momento em que se adentra aos labirintos da escrita e aos segredos da compreensão.

    Exame pelo negativo

    A gente sempre pode aprender também pelo negativo. Os mais ingênuos tendem a achar que do negativo sempre é preciso fugir (assim como da dificuldade), sempre é preciso evitar, um tanto por um medo antecipado, outro tanto apenas por gosto de seguir as leis gerais da positividade preconizada pelo senso comum. A potência do negativo está no fato de nos permitir contornar a hesitação diante dos positivos disponíveis. Explico-me. Hesitar é sinal de alguma sensatez e não há justificativa razoável para seguir qualquer onda inercial em oferecer supostas certezas, menos ainda sem tê-las.

    A facilidade tende a ser a confirmação da zona de conforto que cada um acaba constituindo para si como inteligibilidade. E nisso não haveria nenhum problema. Trata-se tão somente da ratificação da posição de origem. A facilidade, no entanto, pode ser como o bajulador que elogia sem escrúpulos e confirma tudo o que já está dado, já está pronto, já está estabelecido, seja pelas agruras de uma acanhada cultura, seja pelos desvios que uma pseudocultura disfarçada de preconceito como suposto conhecimento, o que acaba sempre vendendo gato por lebre. Pretender encontrar facilidade em territórios desconhecidos é como não gostar de viajar para se poupar de ter de pensar sobre a novidade, ter de lidar com a instabilidade das próprias categorias de pensamento postas à prova perante outras lógicas, outros modos de entender, outras maneiras de olhar o mundo.

    Diante dos vários impasses com os quais nos deparamos, se matutar no sentido das opções, situações e fenômenos positivos não faz avançar, sempre podemos recorrer ao contrário do que decidem os positivistas notórios. Nem sempre é evidente esse contrário, mas se abre em horizonte de consideração quando os caminhos redundam em dificuldade. A sabedoria prática, segundo Aristóteles, está em aprender a definir e seguir atitudes exemplares, de pessoas que nos servem de modelo. O aventureiro que se lança ao desconhecido tem parentesco com o equilibrista que não tem receio do possível ridículo de suas posições na corda bamba. Ou seja, compreende que a alternância entre estabilidade e desequilíbrio faz parte do caminho que definiu. Assim como para avançar é preciso alternar em cada passo o risco de cair e nem por isso o tombo se torna regra. Ao contrário, aprendemos que não seria possível falar em andar sem incluir a instabilidade.

    Isso quer dizer que a oportunidade de enfrentar a dificuldade nos oferece outra face da moeda do processo do entendimento. Como parte fundamental, faz parte do alicerce de toda compreensão e jamais é eliminada. Antes, é revitalizada e reinterpretada como campo de experimentação no qual o exercício, a prática e a frequentação vão fortalecendo o trânsito entre inteligibilidade, significados, formulação de hipóteses cada vez mais consistentes a exames de validação.

    Diante da dificuldade é preciso considerar que somos convidados a ser outros. Isso porque o que há de metaforicamente espinhoso em assuntos tidos por difíceis sejam arestas que ferem nossa possível vaidade de “plenos entendedores” (o que não existe), nossa presunção de bom senso (sempre quimérico) e nossas veleidades de prontos para os desafios (outra ilusão). Nem um, nem outro. Estamos sempre tendo de ser reinventados e as dificuldades são brutais nisso, daí o condicionamento da incompreensão que resulta. Trata-se de dogma escolar a recusa a priori de toda dificuldade e de toda complexidade, ao ponto de ter atingido com eficácia gerações de estudantes amedrontados pela mera menção dessa ideias. Quando somos rebaixados às simplicidades e às facilidades habitamos riscos permanentes de superstições, fantasias e mistificações, o que acaba por produzir a impressão de que a própria vida se confundiria com essa condição. Não é à toa que a ideia de simplicidade (mesmo sendo em si uma complexidade) virou lema de pessoas que se pretendem pedagogicamente competentes.

    Nenhuma simplicidade subsiste como tal depois do menor exame atencioso. O recurso é ideológico na medida em que acarreta sobretudo temor de apossar-se da própria inteligência como instância legítima de investigação das coisas do mundo. Ou seja, uma ideologia que reforça a menoridade perpétua como mérito. E o pior: tem feito inúmeros e fiéis seguidores.

    Habitar a complexidade

    Diante de um texto, normalmente os leitores se comportam como se tivessem de domesticar imediatamente os sentidos, dominá-los, submetê-los, aproximá-los do que consideram familiar, tornar reconhecíveis os percursos que o texto inventa. Mas, para alguns textos, se o leitor forjasse em si próprio uma força de entrega (provisória) que permitisse a ele ser antes convertido pelos critérios de inteligibilidade do texto, apresentado a sentidos antes desconhecidos e aprender a se acostumar com uma sintaxe e um vocabulário novos, então é possível que a experiência da leitura produzisse de fato uma renovação das perspectivas, dos interesses e do alcance dos leitores, que, numa palavra, ajudasse a formar o entendimento, a sensibilidade e a imaginação.

    Nos filmes mais escancaradamente comerciais, ao nos acostumarmos, por exemplo, com categorias simplistas como “do bem” e “do mal” para “encaixar” a trama na perspectiva de compreensão que estamos habituados, não percebemos, mas cedemos a uma inteligibilidade esquemática e em grande medida falsificadora da diversidade e dos variados graus de comportamento e de escolhas que os personagem podem ter e fazer. Como os filmes tendem a ser a mais massiva, exclusiva e hegemônica experiência cultural de grande das pessoas, então, como decorrência, o modo como assimilam princípios e valores acaba refém exclusivo dos formatos e conteúdos mais banalizadores das circunstâncias de vida dos personagens em foco no cinema e na televisão.

    Uma atenção forjada por esse tipo de simplificação fica como que à deriva diante dos chamados “filmes de arte”, porque, claro, a sutileza, a riqueza de gradação dos tipos, a refinação dos roteiros e a valorização da inteligência e da sensibilidade dos espectadores fazem naufragar os apelos imediatistas de sentidos que as insuficientes categorias fornecidas pelo cinema comercial não dão conta e nem pretendem dar. Daí perderem, de início, o interesse, terem sono e desistirem das novidades pela força do costume rebaixado ao meramente comum, repetitivo, esperado.

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    Na música, quem aprende a apreciar a beleza de uma exposição musical clássica refundou antes e completamente suas próprias categorias de exame dos sentidos de beleza, por isso aprendeu a prolongar o próprio prazer diante desse tipo de música. O mesmo sono dos espectadores de cinema comercial diante dos “filmes de arte” assola os ouvidos adestrados pelas músicas comerciais diante, por exemplo, de um concerto. Isso quer dizer que é preciso esforço para não se deixar assimilar apenas pelo que há de comercial nas opções de formação cultural. E esse esforço se traduz naquela entrega aos critérios de inteligibilidade que sobretudo as obras consideradas clássicas podem oferecer a quem se dispõe a aprender com elas.

    Há, ainda, outro exemplo, um sentimento inconfessado de que diante da Vênus de Milo falta algo à estátua que a completaria como obra. E não será sempre um sentimento semelhante que experimentamos quando nos deparamos com uma obra cujo curador ou editor achou por bem esclarecer que se trata de “obra inacabada”? Isso acontece por causa da exigência dos critério de compreensão orientados pelas categorias de inteligibilidade comuns que cada um formou de acordo com as experiências culturais a que teve acesso e se entregou.

    Seria preciso permitir-se acompanhar com atenção e assimilar tanto quanto possível a lógica e as regras de cada gênero de obra de arte e fazer disso um programa de aprimoramento para que se reformasse a qualidade de recepção e, com isso, produzisse apreciações menos como apropriações e mais como prazer e conhecimento de reforma do gosto e da inteligência. O resultado da civilidade vem do aprendizado e não simplesmente de se nascer sob uma nacionalidade ou de apenas viver em uma cidade. Participar da cultura, da arte e dos sistemas da vida civil intelectualmente ativa significa dispor e cultivar de um apurado conjunto de regras e de limites que nos darão, com sorte, o único e talvez o melhor sentido da ideia de liberdade realizável em termos de vida social e profissional. Se não lembrarmos sempre disso, o efeito tenderá a ser uma existência de permanente e involuntária adesão ao confronto acarretado por escolhas como se vivêssemos sozinhos no mundo. E, mais, teleguiados exclusivamente pela cultura da submissão.

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