A maravilha que é ainda não ter lido todos os livros do mundo e que nunca conseguirei completar tal façanha. Porque a literatura é assim: um grande espaço infinito, que ora se parece um abismo escuro e sinistro, ora um assustador penhasco, e em outros momentos simplesmente um colo de mãe, para abraçar e proteger leitores.

    Alguns livros, aqueles raros, especiais, que além de abismos, penhascos e colos de mãe, participam da nossa vida tão ativamente que ao recordamos de alguma coisa de nosso próprio passado, lá está o livro, para marcar e pontuar tudo o que acontece ao redor dele. É como se o livro fosse umbigo e que tudo girasse em torno dele.

    Lembro-me que quando eu li “Grande Sertão: Veredas”, houve um episódio que eu precisei caminhar muito até chegar a tempo na biblioteca para devolvê-lo sem pagar multa. Eu me lembro tão bem do caminho, o gramado verde, o jardim que contornava o espaço, e que fazia frio, e que eu vestia um casaco preto e que o céu estava tão azul e límpido. Mas se não houvesse o livro embaixo de meus braços, essa cena não estaria tão clara para mim. Por que eu também me lembro de pensar em Diadorim durante todo o caminho, uma personagem que despertou em Riobaldo, homem macho, cabra da peste, cangaceiro, um sentimento tão puro e nobre, o amor. Mesmo que Diadorim… ah, Diadorim!!!

    E eu me lembro da primeira vez que tentei ler As Ondas. Eu estava num ônibus e uma senhora sentou ao meu lado e disse: “sabia que eu não sei ler, acho bonito você aí lendo”. Eu sorri e claro que senti aquela chateação por ter sido interrompida, eu estava na parte que um personagem assumia sentir ciúmes, como era o nome dele mesmo? Não sei. Mas a senhora não quis encerrar o assunto, a princípio achei que era uma vingança, “se eu não posso ler, você também não”. Mas me enganei, ela queria me contar, conversar, explicar porque ela não estudou, e os filhos dela, e o marido violento, e o Natal que ela passou sozinha, chorando e com fome.

    O que eu senti durante todo o relato daquela senhora foi uma mistura de raiva, por ela não me deixar ler; de pena, pela vida tão sofrida; de ódio, pela violência que ela sofreu; e também, de repente, eu pensei que a vida daquela senhora, que não sabia ler, poderia ser um bom livro. E enquanto ela contava sua triste história, eu olhava para a capa do meu livro, as ondas quebrando num tom azul escuro, na praia. E pensava também que eu não sabia o que dizer para aquela senhora, que eu não entendia de violência doméstica, nem de filhos, tampouco de passar fome, assim como não estava entendendo o livro de Virginia Woolf, aquelas vozes conversando confusas, dispersas, ciumentas…

    Então, quando eu falo das saudades dos livros que li, é isso: porque eles se tornam grandes divisores dos episódios da vida real. Ele registra, marca, tatua, como se a nossa vida ganhasse as mesmas cores da capa e os pensamentos se tornassem a voz do autor, mesmo com leituras difíceis; mesmo com leituras fáceis; mesmo com chuva, ou frio, ou sol. O livro leva a vida para vida que leva livro. Livro, vida, livro. Saudades dos livros que li.

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