Em tempos de fortes ameaças ao Sistema Único de Saúde (SUS) e de retrocesso social e econômico em diversas áreas, colocando o Brasil – novamente – rumo ao Mapa da Fome, a leitura de Zilda Arns: uma biografia, obra escrita pelo jornalista Ernesto Rodrigues e publicada pela Rocco em 2018, torna-se necessária e inspiradora.

    Zilda Arns

    O jornalista, por meio de entrevistas e pesquisas feitas durante cinco anos, traça os primeiros anos de vida de Zilda Arns Neumann, nascida em 25 de agosto de 1934, no povoado de Forquilhinha, sul de Santa Catarina, no seio da católica e alemã família Arns, que gerou outra importante figura para a história brasileira: Dom Paulo Evaristo Arns, futuro arcebispo da diocese de São Paulo. Também mostra a rígida educação recebida e os passos que a levaram à Faculdade de Medicina na UFPR, para se tornar uma das mais importantes médicas, gestoras e ativistas do Brasil, dedicada ao combate à mortalidade infantil, desnutrição e violência.

    A Pastoral da Criança

    Famosa por ser a fundadora da Pastoral da Criança, a trajetória de Zilda se mistura à história da criação e desenvolvimento dessa Pastoral, que começou como um projeto-piloto da Igreja Católica e da UNICEF, em 1983, na paróquia de São João Batista, em Florestópolis, interior do Paraná.

    Na época, a cidade detinha a maior taxa de mortalidade infantil do Brasil: 127 mortos em cada mil crianças nascidas. A grande maioria sequer chegava aos cinco anos de idade por causa da desnutrição e diarreia. Entretanto, mesmo diante de disputas de poder entre pastorais supervisionadas pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e das brigas de egos entre líderes, a Pastoral da Criança extrapolou os limites religiosos e assistencialistas, ao congregar líderes ecumênicos e políticos de diferentes vertentes e receber apoio midiático de grandes veículos de comunicação, como a TV Globo, por meio do Programa “Criança Esperança”. Aliás, Ernesto é muito preciso em mostrar as discussões movidas por ciúmes no interior da Igreja, em uma verdadeira “guerra santa”, que enfurecia Zilda e prejudicava o avanço dos trabalhos da Pastoral.

    Educação e empoderamento feminino

    O livro mostra como a organização prezou pela educação e empoderamento feminino, ao focar principalmente no papel das mães dentro das comunidades. Seu trabalho foi comparado ao do educador Paulo Freire, já que destacava a pessoa como agente da mudança. Segundo o bispo anglicano Naudal Gomes, “as mães participavam por causa do interesse na saúde e no crescimento dos seus filhos. Era este o grande motivador do encontro das pessoas.” (p. 111).

    Dessa forma, um projeto básico de saúde, que começou mapeando a causa da mortalidade infantil e introduzindo o soro caseiro, permitiu a criação de diversas outras ações, como o programa de alfabetização de jovens e adultos, já que se constatou que quanto menor era a escolaridade das mães, maiores eram a desnutrição e a mortalidade das crianças, assim como programas de geração de renda voltados especificamente para as famílias, um livreto educativo sobre a Aids e campanha de prevenção à violência contra a criança no ambiente familiar.

    O respaldo dos dados científicos

    Segundo a biografia, Zilda Arns buscava respaldar todas as ações da Pastoral em dados científicos, que sempre se sobrepuseram às suas convicções católicas, de sua família e demais envolvidos no projeto. Isso fica muito claro quando o texto trata das discussões sobre aborto e uso da camisinha e anticoncepcionais, assuntos estes que Zilda se posicionava contra, enquanto católica conservadora, mas que, enquanto médica e sanitarista, manifestava-se sobre a necessidade de promoção de medidas educativas e preventivas visando ao controle de natalidade e era sensível às correntes favoráveis ao aborto por conta do sofrimento e da alta mortalidade de mulheres pobres que recorriam – e recorrem – ao aborto clandestino.

    O livro destaca, ainda, a preocupação da médica com a transparência e gestão do uso dos recursos financeiros e com a organização geral da Pastoral da Criança, preocupação esta que serviu de exemplo para ONGs, empresas e até mesmo para os governos. A Pastoral, hoje, mantém-se atuante, atendendo mais de 938 mil crianças, em 3.519 municípios, por meio da atuação de mais de 160 mil voluntários (88,2% são mulheres), e está presente em outros 10 países.

    Líder crítica e destemida

    Ao longo de 286 páginas, Ernesto apresenta uma figura carismática, acolhedora, mas, também, uma líder crítica, destemida, que prezava pela eficiência e pelo que julgava ser correto, independente do quanto isso a colocaria contra diversas autoridades eclesiásticas, políticas e midiáticas.  Surpreendeu-me, por meio da leitura, a capacidade que Zilda Arns teve de dialogar com figuras tão antagônicas e transitar em meios marcados por fortes interesses políticos e econômicos. Vale ressaltar, também, os interesses empresarias, como os da indústria farmacêutica, que se posicionaram contra a utilização do soro caseiro, que se mostrou remédio rápido, eficaz e barato contra a diarreia infantil.

    Além disso, a biografia traz uma questão pertinente a muitas mulheres: o dilema entre a maternidade e a vida profissional. Zilda sempre buscou se aperfeiçoar profissionalmente e estar presente em eventos, reuniões e formações ligadas à Pastoral da Criança (o livro até traz um breve currículo das suas atividades profissionais). Mas em diversos trechos da obra, fica evidente o quanto ela sentiu a pressão de conduzir um dos maiores projetos sociais do planeta e cuidar de seus cinco filhos, contando, inicialmente, com a presença do esposo, Aloysio, e depois sozinha, ao ficar viúva, em 1978, aos 43 anos. Nas palavras de seu filho Nelson:

    “Se a gente tem uma sociedade machista hoje, imagine cinquenta anos atrás. Que homem você imaginaria, em 1973, por exemplo, ficar com quatro filhos em casa para a esposa grávida fazer um curso na Colômbia por três meses? Ou fazer o mesmo depois, em 1977, quando ela fez o curso de saúde pública, pegando ônibus todo domingo à noite para São Paulo e voltando só na sexta à noite para passar o sábado e o domingo com a família?” (p. 38).

    Em outro momento, no livro, Elson Faxina, comenta sobre uma confissão de Zilda: “Ela se sentia em dívida com a família. Sempre senti a doutora Zilda muito feliz e realizada no plano social, mas acho que a ação social a engoliu um pouco como mãe.” (p. 170).

    O terremoto do Haiti

    Zilda Arns faleceu em 12 de janeiro de 2010, vítima do terremoto que devastou o Haiti e deixou 316 mil mortos no país mais pobre do Ocidente. Ao 75 anos, incansável mesmo após passar por tantos lutos e lutas, Zilda estava trabalhando na Pastoral da Criança Internacional. Em seu discurso para os religiosos haitianos, que nunca chegou a ser lido, Zilda deixou uma bela mensagem, que, de alguma forma, resume a sua obra:

    “Como os pássaros, que cuidam de seus filhos ao fazer um ninho no alto das árvores e nas montanhas, longe dos predadores, ameaças e perigos, e mais perto de Deus, deveríamos cuidar de nossos filhos como um bem sagrado, promover o respeito a seus direitos e protegê-los.” (p. 214).

    O livro é um importante relato sobre uma figura que soube separar ideologias políticas em nome de uma missão maior e da transformação da sociedade. Zilda Arns foi um exemplo de mulher que soube se posicionar em ambientes altamente machistas, como os gabinetes do governo e da Igreja, e que visualizou a necessidade de empoderar outras mulheres em busca de melhores condições para as crianças e toda a comunidade, por meio da geração de renda e da educação.

    Sua luta pela atenção primária à saúde em um país ainda fortemente marcado pela desigualdade é, também, um lembrete de que o sistema público de saúde deve ser defendido e fortalecido em prol de uma grande parcela da população.

    Mais do que isso, sua trajetória nos mostra que fé e ciência não precisam andar separadas, e que a Igreja, enquanto instituição, precisa ir além da evangelização e fazer um trabalho social, dando voz àquelas e àqueles que não têm voz e lutando pelos direitos dos mais pobres e fracos.

    Zilda Arns recebeu diversos prêmios durante a sua vida e chegou a ser indicada ao Prêmio Nobel da Paz. Além disso, desde 2015, corre o processo de beatificação no Vaticano. Independentemente do resultado deste processo, a biografia publicada neste ano é mais uma homenagem à sua trajetória, que deve ser conhecida e respeitada, e às suas obras sociais, que devem ser protegidas e expandidas mesmo sob ataques.

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