Uma resenha crítica com reflexões pessoais sobre a leitura do livro Utopia, de Thomas More. Uma obra pequena, mas com um legado enorme!

    Utopia (Thomas More): resenha crítica

    Bem, a tentativa de criar, sozinho, as bases de uma sociedade perfeita é bem ousada e, até certo ponto, prepotente. Thomas More se propôs a isso e obteve sucesso, já que sua obra deu origem a um conceito que guia a filosofia de vida e a atuação política de muita gente.

    Por ter se arriscado a algo tão grandioso, é certo que o autor não chegou à perfeição. Se é que isso é possível, afinal. De qualquer forma, a obra de More reproduz costumes conservadores e práticas sociais inaceitáveis nos dias de hoje. Ler Utopia deve ter sido chocante para as pessoas em 1516. E hoje este efeito permanece, mas por motivos diferentes. É também sobre essa sensação que a leitura me causou que vou falar nesta resenha de Utopia.

    Romance não, exercício narrativo

    Antes de partir para as partes da resenha onde comento sobre o conteúdo de Utopia, quero falar um pouco sobre a forma. Se você, como eu, também tem o hábito de ler ficção contemporânea, ao pegar um livro escrito na Idade Média, vai sentir a diferença!

    Sem dúvidas, a ficção amadureceu e desenvolveu técnicas narrativas incríveis nos últimos 500 anos! O texto de More me parece mais um exercício narrativo que o escritor deve fazer para estabelecer as regras e funcionamento do seu universo ficcional do que exatamente um romance. Não dá pra chamar Utopia de romance considerando o que entendemos como romance hoje. De jeito nenhum.

    A partir do livro de More, consegui imaginar várias tramas possíveis. Dramas pessoais e dilemas enfrentados pelos dirigentes da ilha, por exemplo. Então, se você gosta de escrever e está criando um universo com regras próprias, elaborar um relato breve sobre os aspectos deste mundo ficcional pode te dar insights sobre o enredo, construção de personagens e, também, auxiliar você durante a escrita para manter a verossimilhança.

    Agora sim, vamos à resenha sobre o conteúdo de Utopia.

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    Colonialismo e escravidão

    A primeira coisa que me chamou a atenção foram os traços de colonialismo presentes na narrativa. Utopus, o fundador da sociedade “perfeita”, é um europeu que invade a ilha, escraviza a população local e impõe seu programa social por meio da violência. Uma sociedade que se pretende igualitária e humanista também escraviza pessoas. Isto é escandalosamente contraditório!

    Além disso, Utopia reproduz o patriarcado. A mulher é submetida a uma situação de opressão, devendo obediência ao marido. Sendo que, olha só que maravilha, este é autorizado, inclusive, a puni-la com agressões físicas sempre que julgar necessário! Em relação ao trabalho, a estrutura social as restringe ao cuidados dos filhos e preparo das refeições, sem contar que são elas que servem as mesas nos restaurantes públicos. Estes restaurantes coletivos são considerados lugares onde o trabalho é degradante e apenas escravizados e mulheres devem atuar. Não existe participação política de mulheres e elas são obrigadas a se casar, assim como os homens, quando atingem uma idade considerada adequada. Ao assumir o matrimônio, devem se mudar para a casa da família do esposo.

    Heteronormatividade e monogamia obsessivas

    Existe uma monogamia rígida e a heteronormatividade impera na ilha de Utopia. Não consigo imaginar uma vida absolutamente feliz em um lugar impregnado por tanto moralismo! A Utopia de More é uma sociedade de controle social com a concepção de que é preciso ter limitações individuais específicas para manter tudo funcionando. Se liberdade e igualdade podem andar juntas em uma organização social é uma questão que ainda não podemos responder com exatidão. Mas uma coisa é certa: em Utopia, igualdade e liberdade não convivem.

    Exclusão e economia igualitária andando juntas?

    Em relação à economia, as ideias de More são visionárias e, sim, serviram de inspiração para movimentos políticos que se comprometem com a igualdade de direitos e oportunidade para todos. Tanto é que Engels precisou escrever um livro para definir as diferenças entre o pensamento dos socialistas utópicos dos socialistas científicos.

    O fato de não existir dinheiro nem propriedade privada é genial! Garantir o revezamento de todas as pessoas no trabalho rural também é algo muito interessante e, com certeza, serviu de inspiração para Skinner em seu Walden II. O sorteio das moradias a cada 10 anos resolve o problema da especulação imobiliária e garante moradia para todas as pessoas.

    Só que este modelo igualitário é excludente ao mesmo tempo! Já que possui como princípio a construção de colônias hierarquicamente inferiores à capital, a sociedade utopiana não é para todo mundo e trabalha para manter a ilha em detrimento de todo o restante da população. A maneira como a cultura de Utopia funciona pressupõe que ela deve ser isolada do todo. More não pensou em um paraíso amplo e irrestrito, mas sim em um pequeno oásis. O paraíso não é para todo mundo, entende?

    A ousadia de imaginar uma utopia…

    Ao mesmo tempo que não deixo de considerar a sociedade utopiana ridícula em muitos aspectos, não posso deixar de afirmar o quanto foi importante que More tomasse a iniciativa de criá-la. Calma, não estou “passando pano” para os problemas da ilha, estou tentando fazer uma análise ampla. Afinal, uma resenha deve analisar os vários aspectos de um texto.

    Sua atitude foi revolucionária e é essencial a nós até hoje porque ela ousa pensar uma sociedade melhor e mais justa, mesmo que esteja suscetível a erros. Vivemos em tempos de ódios e desesperança. Ah, e também de transformações sociais e econômicas absurdas. A tecnologia tem impactado nossa maneira de ver o mundo, de se relacionar com ele. E não para por aí: se a tendência é a robotização da sociedade, quando a maior parte do trabalho puder ser realizado apenas por máquinas, como se organizará o mercado de trabalho? Como as pessoas vão sobreviver? E a exploração espacial, o que vamos encontrar pelo Universo afora?

    Pensando por este lado, acredito que nosso tempo possui semelhanças com o período em que More viveu. Em 1516 o mundo estava sendo mapeado, pessoas se aventuravam a conhecer lugares nunca antes imaginados. A Idade Média daria lugar à Modernidade, a Revolução Industrial estava prestes a transformar a forma como as coisas funcionavam em todos os níveis. Naquele momento de mudanças e descobertas, More ousou imaginar uma forma de organizar um mundo mais justo. Errou? Evidentemente. Mas foi importante que ele tentasse, pelo menos.

    … pelo qual lutar

    Se eu vivesse em Utopia, certamente a ilha seria uma distopia para mim. A questão é que foi justamente a criação imperfeita de More que inaugurou uma tradição filosófica que não se conforma com as injustiças do mundo e trabalha para transformar o presente em algo cada vez mais parecido com o que podemos chamar de perfeito.

    Quando nos dedicamos a pensar em um mundo perfeito a partir do que somos hoje, teremos algumas ideias bem diferentes das de More, e talvez, daqui a 500 anos, o mesmo exercício produza uma projeção que nós sequer podemos imaginar. Mas você compreende como é importante esse movimento?

    Não se trata apenas de criar um mundo imaginário onde não exista problemas, mas de projetar um futuro razoável, em que as principais dilemas de nossa época, como a questão ambiental, da diversidade, da igualdade de gênero e do trabalho sejam resolvidos. Um futuro possível, que já existe como potência. Um futuro pelo qual lutar.

    Já tem gente fazendo isso, sabia? Já ouviu falar do movimento futurista? Bom, mas isso fica pra outro texto. Se quiser que eu fale sobre isso por aqui, por favor, deixa um comentário!

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