Ler o clássico da literatura Guerra e Paz, do russo Liev Tolstói, era um desejo de longa data, mas sempre adiado por outras leituras e tarefas e, também, por um certo receio de encarar as mais de 1500 páginas do livro. Até que, em 2019, conversando com a Rossana Pinheiro-Jones, amiga de longa data, colaboradora da Livro & Café e companheira de loucuras literárias, resolvemos, ao lado de outros amigos, iniciar a leitura coletiva da obra. 

    Bom, peguei o primeiro volume do meu box da L&PM e comecei a desbravá-lo. Não sei se pelo formato da edição – um pocket book, sem notas de rodapé e outros detalhes que dificultaram a leitura -, ou se pela falta de concentração, ou de entrega ao livro, essa primeira aproximação com o texto de Tolstói não foi boa, apesar da sinopse prometer uma narrativa incrível.

    Basicamente, Guerra e Paz, publicado em partes entre 1865 e 1869,  propõe-se a narrar a história de cinco famílias russas no período das Guerras Napoleônicas, com especial atenção a três delas: os Bezúkhovs, os Bolkónskis e os Rostóvs. Tolstói constrói uma obra-prima em torno das vidas, misérias e amores de personagens ordinários e extraordinários (e não pense que Napoleão Bonaparte ocupa só o posto de extraordinário diante dos olhos do nosso escritor). Como historiadora, todo trabalho que se dedica às peripécias do líder francês chama a minha atenção. Por isso, num primeiro momento, fiquei decepcionada em não me ver “encantada” pelo clássico, que nem conseguimos classificar: não se trata de um romance, nem epopeia, muito menos crônica histórica, como bem lembra o seu autor.   

    Final do ano passou, em janeiro de 2020 me vi acamada por causa de uma cirurgia, entediada com a vida, então resolvi dar outra chance ao russo. Já tinha lido mais de 100 páginas da edição pocket, mas resolvi começar do zero e usar a versão em eBook da Companhia das Letras. Sim, decidi ler Guerra e Paz na tela do meu celular, pois não tenho o eReader do Kindle. Sim, serão mais de 4000 páginas em uma tela de 5,2 polegadas. Só espero terminar a leitura sem problemas de visão.

    Nesse retorno, a relação com Guerra e Paz foi diferente. Consegui me conectar aos personagens apresentados e me ver diante daquela encenação das famílias aristocráticas em seus jantares onde vida e morte são negociadas. E não usei encenação aqui à toa: desde o começo, parece-me que Tolstói nos coloca diante de uma peça de teatro, na qual certas figuras manipulam enquanto outras são manipuladas em determinados “campos”, como bem teorizou Pierre Bourdieu em O poder simbólico (2012). Há até uma passagem interessante envolvendo Pierre (ou Pedro) Bezúkhov, personagem principal da obra. Filho bastardo, educado no exterior, retratado como tímido, gordo e desajeitado, Pierre volta para a Rússia e repentinamente, recebe uma herança inesperada. No leito de morte de seu pai distante, precisa encenar o papel de bom e triste filho; ao se ver o mais novo ricaço de São Petersburgo, precisa encenar o papel de bom partido e aceitar toda a bajulação e falsidade. E ele acata a tudo passivamente.

    “Pierre, de início, quis sentar em outro lugar para não incomodar a senhora, quis pegar a luva ele mesmo e desviar-se dos médicos, que aliás em nada atrapalhavam sua passagem; mas de repente sentiu que aquilo não seria correto, sentiu que naquela noite ele era uma pessoa obrigada a cumprir um ritual terrível e esperado por todos, e que por isso tinha de receber os favores de todos. Em silêncio, recebeu a luva das mãos do ajudante de ordens, sentou-se no lugar da senhora, colocou as mãos grandes simetricamente sobre os joelhos, numa pose ingênua de estátua egípcia, e decidiu em seu íntimo que tudo aquilo tinha de se passar exatamente desse modo e que ele, naquela noite, para não sair do rumo e não fazer tolices, não devia agir segundo a sua razão, e tinha de render-se por inteiro à vontade daqueles que o guiavam.” (p. 269-270, versão eBook)

    Seria Pierre um fraco, um conformado? Ou a questão aqui é o escritor russo afirmando que, no final, ninguém tem livre-arbítrio? Guardemos essa ideia.

    Na primeira parte do Volume 1, também somos apresentados a Andrei (ou André) Bolkónski. Amigo de Pierre, esposo da graciosa, jovem e grávida Lisa (descrita VÁRIAS VEZES por Tolstói como dona de um bonito lábio curto coberto por um bigodinho preto quase imperceptível), Andrei se vê farto daquela vida na alta sociedade e de sua vida de casado – e de futuro pai, e decide se tornar ajudante de campo, uma espécie de secretário pessoal, do príncipe Mikhail Kutuzov na Guerra da Terceira Coalizão contra Napoleão, em 1803. Mas será mesmo escolha, ou, novamente, mais um ato esperado de alguém de sua posição, alguém que, conforme lemos na obra, quer se tornar herói como seu objeto de admiração: o próprio Napoleão, aquele que quer dominar a sua Rússia? Outra ideia que podemos explorar. Ah, abre parênteses: Andrei tem tudo para ser o meu crush literário, por seus traços de boy-lixo-filósofo-depressivo. Veremos o andamento da história. Fecha parênteses.  

    Enfim, estou me alongando, ainda estou apenas no começo do primeiro volume e sinto que nem toquei nos pontos mais importantes da história. Trarei mais reflexões no próximo diário. Até lá.

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