Ler as poesias de Álvaro de Campos é vivenciar um diálogo com o nosso presente.

    Fernando Pessoa, poeta português, dispensa apresentações. Se você ainda não conhece a poesia desse grande autor, aproveite essa lista abaixo com as 10 melhores poesias de Álvaro de Campos, um dos heterônimos de Fernando Pessoa que mais dialogam com o tempo presente.

    1. Apontamento (Álvaro de Campos)

    A minha alma partiu-se como um vaso vazio.
    Caiu pela escada excessivamente abaixo.
    Caiu das mãos da criada descuidada.
    Caiu, fez-se em mais pedaços do que havia loiça no vaso.

    Asneira? Impossível? Sei lá!
    Tenho mais sensações do que tinha quando me sentia eu.
    Sou um espalhamento de cacos sobre um capacho por sacudir.

    Fiz barulho na queda como um vaso que se partia.
    Os deuses que há debruçam-se do parapeito da escada.
    E fitam os cacos que a criada deles fez de mim.

    Não se zanguem com ela.
    São tolerantes com ela.
    O que era eu um vaso vazio?

    Olham os cacos absurdamente conscientes,
    Mas conscientes de si mesmos, não conscientes deles.

    Olham e sorriem.
    Sorriem tolerantes à criada involuntária.

    Alastra a grande escadaria atapetada de estrelas.
    Um caco brilha, virado do exterior lustroso, entre os astros.
    A minha obra? A minha alma principal? A minha vida?
    Um caco.
    E os deuses olham-o especialmente, pois não sabem por que ficou ali.

    2. Todas as Cartas de Amor são Ridículas (Álvaro de Campos)

    Todas as cartas de amor são
    Ridículas.
    Não seriam cartas de amor se não fossem
    Ridículas.

    Também escrevi em meu tempo cartas de amor,
    Como as outras,
    Ridículas.

    As cartas de amor, se há amor,
    Têm de ser
    Ridículas.

    Mas, afinal,
    Só as criaturas que nunca escreveram
    Cartas de amor
    É que são
    Ridículas.

    Quem me dera no tempo em que escrevia
    Sem dar por isso
    Cartas de amor
    Ridículas.

    A verdade é que hoje
    As minhas memórias
    Dessas cartas de amor
    É que são
    Ridículas.

    (Todas as palavras esdrúxulas,
    Como os sentimentos esdrúxulos,
    São naturalmente
    Ridículas.)

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    3. Trapo

    O dia deu em chuvoso.
    A manhã, contudo, esteve bastante azul.
    O dia deu em chuvoso.
    Desde manhã eu estava um pouco triste.

    Antecipação! Tristeza? Coisa nenhuma?
    Não sei: já ao acordar estava triste.
    O dia deu em chuvoso.

    Bem sei, a penumbra da chuva é elegante.
    Bem sei: o sol oprime, por ser tão ordinário, um elegante.
    Bem sei: ser susceptível às mudanças de luz não é elegante.
    Mas quem disse ao sol ou aos outros que eu quero ser elegante?
    Dêem-me o céu azul e o sol visível.
    Névoa, chuvas, escuros — isso tenho eu em mim.

    Hoje quero só sossego.
    Até amaria o lar, desde que o não tivesse.
    Chego a ter sono de vontade de ter sossego.
    Não exageremos!
    Tenho efetivamente sono, sem explicação.
    O dia deu em chuvoso.

    Carinhos? Afetos? São memórias…
    É preciso ser-se criança para os ter…
    Minha madrugada perdida, meu céu azul verdadeiro!
    O dia deu em chuvoso.

    Boca bonita da filha do caseiro,
    Polpa de fruta de um coração por comer…
    Quando foi isso? Não sei…
    No azul da manhã…

    O dia deu em chuvoso.

    4. Demogorgon (Álvaro de Campos)

    Na rua cheia de sol vago há casas paradas e gente que anda.
    Uma tristeza cheia de pavor esfria-me.
    Pressinto um acontecimento do lado de lá das frontarias e dos movimentos.

    Não, não, isso não!
    Tudo menos saber o que é o Mistério!
    Superfície do Universo, ó Pálpebras Descidas,
    Não vos ergais nunca!
    O olhar da Verdade Final não deve poder suportar-se!

    Deixai-me viver sem saber nada, e morrer sem ir saber nada!
    A razão de haver ser, a razão de haver seres, de haver tudo,
    Deve trazer uma loucura maior que os espaços
    Entre as almas e entre as estrelas.

    Não, não, a verdade não! Deixai-me estas casas e esta gente;
    Assim mesmo, sem mais nada, estas casas e esta gente…
    Que bafo horrível e frio me toca em olhos fechados?
    Não os quero abrir de viver! ó Verdade, esquece-te de mim!

    5. Escrito Num Livro Abandonado em Viagem

    Venho dos lados de Beja.
    Vou para o meio de Lisboa.
    Não trago nada e não acharei nada.
    Tenho o cansaço antecipado do que não acharei,
    E a saudade que sinto não é nem no passado nem no futuro.
    Deixo escrita neste livro a imagem do meu desígnio morto:
    Fui, como ervas, e não me arrancaram.

    álvaro de campos
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    6. Esta Velha

    Esta velha angústia,
    Esta angústia que trago há séculos em mim,
    Transbordou da vasilha,
    Em lágrimas, em grandes imaginações,
    Em sonhos em estilo de pesadelo sem terror,
    Em grandes emoções súbitas sem sentido nenhum.

    Transbordou.
    Mal sei como conduzir-me na vida
    Com este mal-estar a fazer-me pregas na alma!
    Se ao menos endoidecesse deveras!
    Mas não: é este estar entre,
    Este quase,
    Este poder ser que…,
    Isto.

    Um internado num manicômio é, ao menos, alguém,
    Eu sou um internado num manicômio sem manicômio.
    Estou doido a frio,
    Estou lúcido e louco,
    Estou alheio a tudo e igual a todos:
    Estou dormindo desperto com sonhos que são loucura
    Porque não são sonhos.
    Estou assim…

    Pobre velha casa da minha infância perdida!
    Quem te diria que eu me desacolhesse tanto!
    Que é do teu menino? Está maluco.
    Que é de quem dormia sossegado sob o teu teto provinciano?
    Está maluco.
    Quem de quem fui? Está maluco. Hoje é quem eu sou.

    Se ao menos eu tivesse uma religião qualquer!
    Por exemplo, por aquele manipanso
    Que havia em casa, lá nessa, trazido de África.
    Era feiíssimo, era grotesco,
    Mas havia nele a divindade de tudo em que se crê.
    Se eu pudesse crer num manipanso qualquer —
    Júpiter, Jeová, a Humanidade —
    Qualquer serviria,
    Pois o que é tudo senão o que pensamos de tudo?

    Estala, coração de vidro pintado!

    7. Estou Cansado

    Estou cansado, é claro,
    Porque, a certa altura, a gente tem que estar cansado.
    De que estou cansado, não sei:
    De nada me serviria sabê-lo,
    Pois o cansaço fica na mesma.
    A ferida dói como dói
    E não em função da causa que a produziu.
    Sim, estou cansado,
    E um pouco sorridente
    De o cansaço ser só isto —
    Uma vontade de sono no corpo,
    Um desejo de não pensar na alma,
    E por cima de tudo uma transparência lúcida
    Do entendimento retrospectivo…
    E a luxúria única de não ter já esperanças?
    Sou inteligente; eis tudo.
    Tenho visto muito e entendido muito o que tenho visto,
    E há um certo prazer até no cansaço que isto nos dá,
    Que afinal a cabeça sempre serve para qualquer coisa.

    8. Há Mais

    Há mais de meia hora
    Que estou sentado à secretária
    Com o único intuito
    De olhar para ela.
    (Estes versos estão fora do meu ritmo.
    Eu também estou fora do meu ritmo.)
    Tinteiro grande à frente.
    Canetas com aparos novos à frente.
    Mais para cá papel muito limpo.
    Ao lado esquerdo um volume da “Enciclopédia Britânica”.
    Ao lado direito —
    Ah, ao lado direito
    A faca de papel com que ontem
    Não tive paciência para abrir completamente
    O livro que me interessava e não lerei.
    Quem pudesse sintonizar tudo isto!

    9. Mas Eu

    Mas eu, em cuja alma se refletem
    As forças todas do universo,
    Em cuja reflexão emotiva e sacudida
    Minuto a minuto, emoção a emoção,
    Coisas antagônicas e absurdas se sucedem —
    Eu o foco inútil de todas as realidades,
    Eu o fantasma nascido de todas as sensações,
    Eu o abstrato, eu o projetado no écran,
    Eu a mulher legítima e triste do Conjunto
    Eu sofro ser eu através disto tudo como ter sede sem ser de água.

    10. O Sono (Álvaro de Campos)

    O sono que desce sobre mim,
    O sono mental que desce fisicamente sobre mim,
    O sono universal que desce individualmente sobre mim —
    Esse sono
    Parecerá aos outros o sono de dormir,
    O sono da vontade de dormir,
    O sono de ser sono.

    Mas é mais, mais de dentro, mais de cima:
    E o sono da soma de todas as desilusões,
    É o sono da síntese de todas as desesperanças,
    É o sono de haver mundo comigo lá dentro
    Sem que eu houvesse contribuído em nada para isso.

    O sono que desce sobre mim
    É contudo como todos os sonos.
    O cansaço tem ao menos brandura,
    O abatimento tem ao menos sossego,
    A rendição é ao menos o fim do esforço,
    O fim é ao menos o já não haver que esperar.
    Há um som de abrir uma janela,
    Viro indiferente a cabeça para a esquerda
    Por sobre o ombro que a sente,
    Olho pela janela entreaberta:
    A rapariga do segundo andar de defronte
    Debruça-se com os olhos azuis à procura de alguém.
    De quem?,
    Pergunta a minha indiferença.
    E tudo isso é sono.

    Meu Deus, tanto sono! …

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