E a morte na literatura? Como é que os autores fazem após alguma cena de morte? Qual é o próximo cenário depois da morte de um personagem? Pensando nisso, selecionei 5 livros e os trechos de cada um deles após a tão difícil cena.
O que sei é que quanto mais o tempo passa, mais compreendemos o que a morte é. O dia seguinte; a semana seguinte; o mês seguinte… é como se a morte realmente se revelasse através da ausência. Mas a vida continua, simplesmente continua. As noites e as manhãs continuam acontecendo, simples e cruel assim.
E a morte na literatura? Como é que os autores fazem após alguma cena de morte? Qual é o próximo cenário depois da morte de um personagem? Pensando nisso, selecionei 5 livros e os trechos de cada um deles após a tão difícil cena. Procurei selecionar frases em que os personagens são mostrados após a morte estar infiltrada na história, quando os personagens que ficaram já a reconhecem como um acontecimento sem volta, ou seja, após o furacão morte passar. E por cada livro ser tão diferente do outro, é perceptível as variações de acordo com o estilo do autor, o narrador da história e, claro, o próprio morto.
Como na vida real, na literatura a morte também é interpretada de várias formas, que põe os personagens em diversas situações: medo, aflição, agonia, sobriedade, frieza, dor, solidão…
A morte de Sirius Black (Harry Potter e a Ordem da Fênix, J.K. Rowling)
Sirius Black é um dos meus personagens preferidos de Harry Potter e até hoje penso que J. K. Rowling poderia tê-lo poupado da morte. Mas ele morreu, está lá registrado e não há como mudar. Ele morre porque, durante uma luta entre os bruxos do bem e do mal, recebeu um feitiço fatal de sua prima Belatrix. A cena de sua morte acontece no Capítulo 35. Assim que Harry percebe a morte de seu tio, fica desesperado e o professor Lupin tenta acalmá-lo. No Capítulo 36 o cenário é o mesmo, Harry corre atrás de Belatrix, que zomba dele até que chega Dumbledore e Voldemort e uma briga mais séria é iniciada. Somente no Capítulo 37 que o cenário muda e então J.K. Rowling revela os sentimentos de Harry após a morte de Sirius Black:
Os pés de Harry bateram em chão firme; seus joelhos se dobraram ligeiramente e a cabeça dourada do bruxo caiu com um baque metálico no chão. Ele olhou ao redor e constatou que chegara ao escritório de Dumbledore.
Tudo parecia ter se consertado na ausência do diretor. Os delicados instrumentos de prata se encontravam mais uma vez sobre as mesinhas de pernas finas, soprando e zunindo serenamente. Os retratos dos diretores e diretoras cochilavam em seus quadros, as cabeças caídas molemente no encosto das poltronas ou apoiadas nas molduras. Harry espiou pela janela. Havia uma fria linha verde-clara no horizonte: o dia ia despontando.
O silêncio e a imobilidade, interrompidos apenas por um raro grunhido ou fungada de um retrato adormecido, eram insuportáveis. Se o ambiente pudesse ter refletido os sentimentos que o dominavam, os quadros estariam gritando de dor. Ele andou pelo escritório silencioso e belo, respirando depressa, tentando não pensar. Mas precisava pensar… não tinha saída…
Era sua culpa que Sirius tivesse morrido; inteiramente sua culpa. Se ele, Harry, não tivesse sido burro de cair na esparrela de Voldemort, se não estivesse tão convencido de que o que vira em sonho era real, se ao menos tivesse aberto a mente à possibilidade de que Voldemort, conforme dissera Hermione, estivesse apostando no prazer de Harry de bancar o herói…
Era insuportável, ele não pensaria no assunto, não conseguiria suportar… havia um terrível vazio em seu peito que ele não queria sentir nem examinar, um buraco negro em que Sirius estivera, em que Sirius desaparecera; ele não queria ter de ficar sozinho com aquele enorme espaço silencioso, não conseguiria suportar…
Um quadro às suas costas soltou um ronco particularmente alto, e uma voz calma exclamou:
– Ah… Harry Potter!…
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A morte de Cecília (As Virgens Suicidas, Jeffrey Eugenides)
Cecília é a irmã mais nova entre cinco garotas que se matam, uma a uma, por motivos misteriosos até mesmo após o término da história. O cenário tem os EUA nos anos 70 e uma família suburbana tradicional. Cecília tira a sua própria vida após a primeira e única festa que acontece em sua casa. Ela pula da janela direto para uma cerca pontiaguda. Uma morte rápida, seguida pelo desespero contido da família e uma comoção artificial dos vizinhos, narrada por um garoto:
Não tínhamos entendido por que Cecilia havia se matado pela primeira vez, e entendemos menos ainda quando fez isso de novo. Seu diário, inspecionado pela polícia como parte da investigação rotineira, não confirmou as suposições de amor não correspondido. Dominic Palazzolo só era mencionado uma vez naquele livrinho de papel de arroz e iluminuras feitas com canetinhas coloridas, que o tornavam parecido com um Livro de Horas ou uma Bíblia medieval. Desenhos em miniatura cobriam as páginas. Anjos rosa-chiclete mergulhavam das margens mais altas ou raspavam as asas entre parágrafos apertados. Donzelas de cabelo dourado pingavam lágrimas azul-marinho na lombada do livro. Baleias cor de uva esguichavam sangue ao redor de um recorte de jornal (colado na página) contendo uma lista de recém-chegados à categoria das espécies em risco de extinção. Seis pintinhos gritavam em meio a cascas de ovo, perto de uma entrada feita na Páscoa. Cecilia tinha enchido as páginas com uma profusão de cores e arabescos, escadas feitas de guloseimas e trevos listrados, mas o registro sobre Dominic dizia apenas: “Hoje o Palazzolo pulou do telhado por causa da Porter, aquela vagabunda endinheirada. Quanta burrice”.
A morte da mãe (O Jardim de cimento, Ian McEwan)
Os 4 irmãos já haviam perdido o pai quando a mãe deles também morre. Quem descobre é a irmã Julie que vai até o quarto e percebe que sua mãe não está dormindo e sim morta. Ela conta para o irmão mais velho, Jack. Os dois juntos realizam a difícil tarefa de contar o que aconteceu para os irmãos menores. Após os 4 irmãos saberem da morte da mãe, e totalmente perdidos com a situação, Ian McEwan nos apresenta a seguinte cena:
No dia seguinte, lá para o fim da tarde, Sue perguntou: “Vocês não acham que temos de contar para alguém?”.
Estávamos sentados em volta do morrinho de pedras. Havíamos passado o dia inteiro no jardim porque fazia calor e porque tínhamos medo da casa atrás de nós, cujas janelas pequenas agora não sugeriam concentração, mas um sono pesado. Pela manhã tinha havido uma briga por causa do biquíni de Julie. Sue achou que ela não devia usá-lo. Eu disse que não me importava. Sue insistiu que, se Julie o usasse, isso queria dizer que ela não ligava para mamãe. Tom começou a chorar e Julie entrou para tirar o biquíni. Passei o dia relendo uma pilha de velhas revistas em quadrinhos, algumas delas do Tom. Eu tinha a sensação de que estávamos esperando que acontecesse alguma coisa terrível, e então me lembrava de que já tinha acontecido. Sue lia seus livros e às vezes chorava baixinho. Sentada no topo do morrinho, Julie jogava umas pedrinhas para cima e as aparava na mão em concha. Estava irritada com Tom, que em certos momentos choramingava e pedia atenção, indo logo depois brincar como se nada houvesse ocorrido.
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A morte do irmão de Liesel (A menina que roubava livros, Markus Zusak)
É a própria morte que narra a história do livro. A personagem principal, Liesel, uma garotinha que antes mesmo de saber ler se sentia atraída pelos livros, vive uma grande história durante a Alemanha Nazista. A morte aparece pela primeira vez quando o seu irmão morre durante uma viagem de trem, ao lado dela e da mãe. Após o doloroso enterro, a cena é:
Mãe e filha deixaram o cemitério e se dirigiram ao próximo trem para Munique.
As duas eram magras e pálidas.
As duas tinham machucados nos lábios.
Liesel percebeu isso na janela suja e embaçada do trem, quando elas embarcaram, pouco antes do meio-dia. Nas palavras escritas pela própria menina que roubava livros, a viagem prosseguiu, como se tudo houvesse acontecido.
Quando o trem parou na Bahnhof, em Munique, os passageiros saíram como que de um embrulho rasgado. Havia gente de todas as classes, mas, em meio a ela, os pobres eram os mais fáceis de reconhecer. Os empobrecidos sempre tentam continuar andando, como se a relocação ajudasse. Desconhecem a realidade de que uma nova versão do mesmo velho problema estará à sua espera no fim da viagem — aquele parente que a gente evita beijar.
Acho que a mãe sabia muito bem disso. Não entregaria os filhos aos escalões superiores de Munique, mas, aparentemente, um lar de criação fora encontrado e, que mais não fosse, ao menos a nova família poderia alimentar a menina e o menino um pouco melhor, e educá-los como convinha.
O menino.
Liesel tinha certeza de que a mãe carregava a lembrança dele, jogada sobre o ombro. Deixou-o cair. Viu seus pés, suas pernas e seu corpo baterem na plataforma.
Como é que aquela mulher podia andar?
Como podia mover-se?
Está aí uma coisa que nunca saberei nem compreenderei — do que os humanos são capazes.
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A morte em Ao Farol, Virginia Woolf
A princípio pensei em escolher a morte de apenas um personagem da história, mas como o “pós-morte” é apresentado em uma única vez e na última parte do livro, que revela um conjunto complexo de mudanças (no cenário, nas pessoas, nos sentimentos, etc), Selecionei o primeiro trecho da última parte:
O que isso significa, então, o que pode tudo isso significar? perguntou-se Lily Bricoe, querendo saber, uma vez que tinha sido deixada só, se devia ir até a cozinha buscar outra xícara de café ou esperar aqui. O que isso significa? – não passava de uma frase feita, subtraída de algum livro, que se ajustava frouxamente ao seu pensamento, pois não conseguia, nesta primeira manhã com os Ramsay, definir seus sentimentos, conseguindo apenas, para cobrir o vazio de sua mente, fazer ressoar uma frase até que esses vapores se dissipassem. Pois realmente, o que sentia ela, ao voltar esses anos todos, com a Sra. Ramsay morta? Nada, nada – nada que pudesse, de alguma forma expressar.
Tinha chegado tarde, ontem de noite, quando tudo estava misterioso, escuro. Agora estava acordada, no seu antigo lugar à mesa do café da manhã, mas sozinha. Também era muito cedo, nem oito horas ainda. Havia essa excursão – eles iam ao Farol, o Sr. Ramsay, Cam e James. Já devia ter ido – tinham que aproveitar a maré ou coisa parecida. E Cam não estava pronta, e James não estava pronto, e Nancy tinha esquecido de mandar preparar os sanduíches, e o Sr. Ramsay tinha ficado irritado e saído da sala batendo a porta.
“De que adianta agora?”, esbravejava.
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