Amar é fazer o próprio café

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Ou: amar é fazer alguma coisa que não gosta?

Quando a gente ama qualquer coisa serve para relembrar. Não, não é isso que quero escrever.

Quando a gente ama, a gente ama também com as coisas que acreditamos e com o que reconhecemos como amor. Neste ponto está o que aprendemos em casa, na escola e na rua. Há alguns que acreditam no amor livre, outros que amar é viver grudado com o outro 24 horas por dia; um outro grupo de pessoas pode viver um amor platônico para sempre; outros trocam de amor como se troca de roupa; etc; etc; etc. Então, o verbo amar, tão comum no sentido de que todo mundo quer vivê-lo, é tão particular, diferente e também pode ser um fardo difícil de carregar, por conta de certas convicções e também do que a sociedade dita como certo ou errado; como amor verdadeiro ou não.

O papel da mulher no “amor” tradicional diz que ela tem o dever de cuidar do homem. Dar casa, comida e roupa lavada, literalmente. A casa, no sentido de manter o lar organizado, limpo, bonito, pronto para receber o homem. Já o papel do homem é APENAS SER HOMEM. Ele pode arrotar na sala, deixar comida no prato e sobre a mesa, não saber lavar a louça (“é que ele tem a mão tão pesada”), muito menos organizar a própria bagunça, pois isso é ser homem. Os homens são assim. É o que mais escutamos por aí. Mas será mesmo? O homem precisa se portar como um ser imbecil incapaz de cuidar de si próprio? Ainda bem que estamos no século XXI e muitos relacionamentos não estão mais construídos com essas premissas. A cada relacionamento que considero ruim para o homem e para a mulher, eu vejo também outros relacionamentos construídos de uma forma saudável para ambas as partes. Chegaremos lá!

Na literatura, principalmente na clássica, é muito comum o modelo tradicional de família, de amor. Em que o homem é um ser incapaz de organizar a própria vida doméstica enquanto a mulher faz tudo isso e, o grande problema, não é reconhecida por tal atitude, pois “são coisas de mulher”. É o que dizem por aí.

Há uma frase que me causou um certo espanto, atribuída a Lucas Richardson (não sei quem é), publicada pela Revista Bula: “Minha mãe não gosta de café, mas faz café há vinte e quatro anos todos os dias para o meu pai. Isso é amor. O amor se esconde nos detalhes”.

Dos comentários sobre essa frase li de todos os tipos. Há os que concordam com Lucas Richardson e veem romantismo na frase. (Ah, a servidão romântica…). E outros que, como eu, percebem que ali há um comportamento desigual. Eu não vi amor nos detalhes, pelo contrário, vi machismo e hipocrisia.

Será que o pai não consegue preparar o próprio café? É necessário mesmo que a mulher faça o café todos os dias para o marido? Será que não seria interessante ele aprender a fazer um cafezinho e assim tirar a tarefa de sua mulher para, quem sabe, em vez de prepara café ela usar o tempo para fazer algo para ela mesma?

No meu mundo ideal, no que eu acredito ser melhor, junto com minhas convicções, o que eu aprendi em casa, na escola e na rua, a frase seria bonita de verdade assim:

Minha mãe não gosta de café, mas fez café para o meu pai aprender como é. Ele aprendeu e há vinte e quatro anos ele faz café todos os dias, no mesmo horário em que ela cuida das flores, algo que ela adora fazer. Isso é amor. O amor se esconde nos detalhes.

Imagem: How To Make Coffee