O amor é um mistério. Ninguém sabe, ninguém viu, mas todo mundo sente ao ponto de, quando não é amor, finge que é, acredita que é, mergulha em águas profundas sem saber onde a brincadeira vai dar. E sempre vale a pena. Sempre. Até mesmo quando tudo dá errado, quando nada era o que esperava ser; isso é viver.

Estou lendo Noite e Dia, de Virginia Woolf que, basicamente, conta a história da família Hilbery e a tentativa de escrever a biografia de um poeta, do jovem advogado burguês Ralph Denham e também outros personagens antagonistas que vão surgindo aos pouquinhos. O jovem Ralph, nutrido de um amor platônico, passa por uma situação tão comum a nós, pessoas reais, que me deixou num estado de euforia: “Ah, Virginia Woolf, só você mesmo para detalhar o inexplicável!”

E funciona mais ou menos assim: o amor platônico é o amor por um fantasma, idealizado através de uma imagem bela que nos faz, dia e noite, semana após semana, idealizarmos uma coisa que não existe, mas que para nós (que sentimos o “amor”) é tão claro, e concreto, e óbvio quanto uma continha de matemática. E ficamos presos em nós mesmos criando situações ricas em detalhes de quando iremos ter uma conversa (no mínimo) com esse “amor”: imaginamos cenas enquanto tomamos um café, imaginamos cada frase trocada enquanto aguardamos o semáforo abrir, cada sorriso retribuído enquanto o garçom completa mais uma dose, potencializando a imagem do fantasma amado e criando, consequentemente, um sentimento maior.

E num belo dia a vida nos presenteia com um encontro verdadeiro com o que, até então, era apenas um fantasma.  E o que poderá acontecer? Ou desapontamento ou encantamento através da descoberta de que o fantasma realmente não existe e:

a.) a realidade é tão chata ou;
b.) a realidade é tão bonita e surpreendente.

Espero que muitas realidades bonitas e surpreendentes aconteçam para todos nós.

Era melhor, de um modo geral, arriscar o presente embaraçoso do que perder uma noite a sopesar desculpas e a construir cenas impossíveis com essa faceta intransigente de si mesmo. Desde que visitara os Hilberty, estava à mercê de uma Katharine fantasma, que vinha a ter com ele quando estava só, e lhe respondia como desejaria que ela respondesse, e que estava sempre ao seu lado para coroar as várias vitórias que eram negociadas cada noite, em cenas imaginárias, enquanto ia do escritório para casa, a pé, por ruas em que as luzes já se haviam acendido. Caminhar com Katharine em carne e osso serviria para nutrir esse fantasma com comida fresca, o que, como o sabem todos aqueles que alimentam sonhos, é processo necessário de tempos em tempos, ou para adelgaçá-lo a tal ponto que, depois disso, de pouco serviria. E essa também é uma mudança que todo sonhador acolhe com prazer. E todo tempo Ralph estava ciente de que a figura de Katharine não estava absolutamente representada nos seus sonhos, de modo que, ao encontrá-la, pasmava-se de que nada tivesse a ver com o sonho que fazia dela.

Noite e Dia, tradução de Raul de Sá Barbosa, Ed. Círculo do Livro, pág. 79

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1 comentário

  1. Simplesmente adorei. Tenho Noite e dia, mas ainda não li. Depois do que acabei de ler aqui, ah, seguramente o livro sairá da estante agora.

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