Olhar minha prateleira de livros é como visualizar os pontos por onde minha mente já navegou. Cada livro ali – grande pequeno, amarelo, vermelho, azul – representa o que sobrou de um momento que vivi. Houve o dia que eu estava sentada no ônibus, olhando o movimento dos carros enquanto o cobrador selecionava o troco para uma senhora. E eu olhava o movimento dos carros porque tinha terminado o segundo capítulo daquele livro vermelho e pensava sobre o que a história queria me dizer. História da minha vida ou do livro? Os dois. E esse livro permanece na prateleira até hoje: eu me lembro do ônibus, eu me lembro do movimento dos carros, me lembro do cobrador selecionando o troco para a senhora. Ela tinha um guarda-chuva azul escuro em uma das mãos, mas lá fora fazia um forte calor, com o céu estalando num azul quase branco.

    Além desse clima que consigo lembrar, devido ao objeto que esteve presente naquele momento ainda permanecer comigo, o que sinto quando vejo o livro é que se eu o abrir, e folhear, e cheirar, e procurar meus rabiscos e anotações nele, eu vou lembrar exatamente quem eu era no momento da leitura e o que eu esperava daquele livro vermelho. Porque de lá pra cá eu mudei.

    Então, como posso me desfazer de um livro? Como eu posso olhar para essa prateleira (ela parece que me lê) e vê-la apenas como um amontoado de livros velhos? A prateleira também sou eu. Ter esses livros ao alcance de meus olhos é como se minha vida fosse um grande cesto cheio de lãs, mas as lãs estão enroscadas umas às outras, bagunçadas, desconexas, imprecisas. Mas eu consigo ver a ponta de cada fio – grande pequeno, amarelo, vermelho, azul – e quando puxo um desses fios é um momento especial que desenrola, que passa por mim como um filme. E eu gosto de todos eles, alguns fios são indecifráveis.

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