Gosto de pegar os livros que já li e folheá-los para descobrir alguns encantamentos que tive durante a leitura, mas que acabei esquecendo. Eu sou do time que faz anotações nos livros, marco a lápis ou a caneta mesmo as passagens dos livros que mais me emocionaram, ou no caso de Franz Kafka, as que mais me causaram estranhamento, pois ler Kafka é uma coisa maravilhosamente esquisita e necessária.

    No livro O Processo, o personagem K. está desesperado para descobrir porque ele está sendo acusado, porém, como prova a frase que selecionei, ainda cabe a ele alguns momentos de lucidez:

    “Mas depois de estar trinta anos no mundo e ter de se virar sozinho, conforme é o meu caso, a gente acaba endurecendo para as surpresas e não vê nelas obstáculos tão complicados assim.”

    (p. 133, O Processo, Editora L&PM Coleção Obras Escolhidas)

    No primeiro momento que encontrei a frase, concordei com ela, afinal, com trinta e poucos anos a gente já sentiu algumas dores, tanto físicas como emocionais. Mas numa segunda leitura, a frase me causa um certo desconforto, pois não estariam as pessoas de trinta e poucos anos querendo defender-se dos tais obstáculos? para que, no caso da queda, aquilo não fure a imagem de uma pessoa dura? Outro detalhe importante é a informação que esse endurecimento não vem apenas com o fato dos trinta anos, mas também em ter de se virar sozinho. A solidão ainda pode ser o fator principal de um endurecimento, muito mais que os trinta e poucos anos.

    Na sequência, o personagem K. recorda-se dos momentos anterior à chegada dos policiais que vieram lhe informar sobre o processo. O que temos, então, é K. dialogando com uma senhora – que já passou dos 30, dos 40 e dos 50. É ela que traz um ponta de luz no conflito de K., enquanto faz uma meia de tricô:

    “Mas antes de tudo o senhor não deve considerar as coisas com gravidade demais. As coisas acontecem neste mundo! (…) Trata-se de sua felicidade, e isso é uma coisa que me toca de verdade.

    (p. 141)

    Adiante, K., mesmo considerando duro para certas coisas da vida, afirma:

    “Fui apanhado de surpresa, e isso é tudo.”

    (p. 141)

    Então, ter seus trinta e poucos anos, talvez seja algo bom para não sentir tanto as porradas da vida, por outro lado, ainda é possível a surpresa. No caso de K., tudo deu muito errado, mas sabemos que na ficção as coisas podem ser levadas aos extremos. Na vida comum, na vida real, uma surpresa, pode fazer surgir outras e outras, mesmo com a solidão e o endurecimento.

    Já sentiu alguma surpresa hoje?

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