A vida, a arte e os monstros: uma breve reflexão sobre as representações do mal na literatura.

    Hoje em dia, a representação do mal na literatura possui uma esfera muito relacionada ao próprio ser humano. Como em Shelley, é o médico Frankenstein que constrói o seu próprio mal, a medida que – em nome da ciência e de seu próprio ego – cria algo que ele mesmo não consegue aceitar.

    Comecei a ler um livro chamado “Monstros e monstruosidades na literatura“. É composto por diversos artigos sobre o tema escritos por alguns especialistas da área, como o Julio Jeha, que também organizou a obra.

    Ao iniciar a leitura, me deparei com aquela sensação de que o livro não me traria novidades, mas como eu sempre gosto de insistir um pouco em minhas leituras, tive a oportunidade de conhecer uma análise muito rica sobre a construção do mal na vida e também na literatura.

    O autor nos conta que desde sempre há esse interesse em descobrir de onde realmente veio o mal. Aprendemos, conforme as histórias, as fábulas, as mitologias e as religiões, que o mal pode ser algo que surge misteriosamente, sem o controle do homem. Mas há divergências filosóficas desde Aristóteles, em torno do que é realmente o mal e o seu surgimento e que acabam se cruzando com o próprio caminho da humanidade, com seus acertos e erros (paz e guerra, por exemplo), que nos dá a oportunidade de rever esse conceito do surgimento do mal e as suas diferentes manifestações por questões sociais, políticas, religiosas etc.

    Frankenstein sempre presente

    O autor cita, então, o clássico Frankenstein, da escritora Mary Shelley. O livro, considerado um ícone tanto na literatura gótica, quanto na literatura de ficção científica, também dá a sua contribuição quando pensamos nessa construção do monstro, ou seja, a presença da monstruosidade na literatura que, de alguma forma, também representa a vida real.

    Segundo o autor, hoje em dia, a representação do mal na literatura possui uma esfera muito relacionada ao próprio ser humano. Como em Shelley, é o médico Frankenstein que constrói o seu próprio mal, a medida que – em nome da ciência e de seu próprio ego – cria algo que ele mesmo não consegue aceitar. A criatura de Frankenstein não possui formas consideradas padrões dentro de sua sociedade, o que o faz, logo que vê a vida nos olhos de sua criação, agir com desespero e medo do monstro que criou. Assim, o monstro existe porque ele não se encaixa na sociedade, não somente por conta de suas deformidades faciais, mas também por ser uma figura que difere do contexto cultural e social do médico.

    Para quem já leu o livro, sabe que uma das perguntas da obra é sobre quem é verdadeiramente o monstro, uma vez que o médico descarta a sua própria criação.

    O poder da literatura

    Acredito mesmo que a literatura tem o poder de trazer para a superfície as profundezas da alma humana e, principalmente, o caos, tanto na perspectiva da vida coletiva quanto individual. No livro, Julio Jeha cita dois autores que desconheço (Johnson Lakoff e Schenider), mas que trazem uma ideia desse poder da literatura:

    “Se filósofos e teólogos falham ao tentar representar o mal, então, escritores talvez sejam capazes de tornar o indizível visível. A serviço deles, figuras do discurso, principalmente metáforas, podem dar corpo a noções abstratas como ‘existência negativa’. As metáforas levam significado de um domínio ontológico para outro, criando uma relação que não se encontra na natureza.” (p. 18)

    É preciso, então, caminhar para a obscuridade do mal, essa coisa que pode ser reconhecida como uma “falha”, um “erro”, uma transgressão. Para alguns, é a ausência do bem; para outros, uma condição natural ao ser humano; outros ainda podem falar que é a ira dos deuses. Cada um, com suas crenças, culturas e ideologias, podem carregar um sentido do que é o mal e assim, apontar dedos para dizer que isso é uma monstruosidade e aquilo não é. Nos livros (seja ficção, contos, romances, religiosos etc), leitores poderão encontrar símbolos (metáforas, fábulas e afins) para desmistificar, ou aumentar seus medos e monstros.

    A causa do mal, a causa dos monstros

    O mais interessante no artigo é a presença de uma pequena análise de algumas obras de Fiódor Dostoiévski, para afirmar o compromisso da literatura em minuciar pelo poder das palavras as tantas questões que podem representar o mal simbólico, mas também o mal real que existe em nossa sociedade:

    “Se é difícil definir o mal, talvez seja possível discernir uma causa para ele. Em muitos de seus livros, Dostoiévski examina a escuridão do mundo para localizar a fonte do sofrimento.”

    Os Irmãos Karamazov: “parece vacilar ao apontar uma causa para o mal, de que todo mundo está impregnado, até mesmo suas partes mais recônditas.”

    O demônio que aparece para Ivan Karamazov: “não é uma causa, mas antecipa a invisibilidade ou, melhor, a banalidade do mal…”

    Notas do subterrâneo: “o autor lança a hipótese de que o mal pode ser o vazio dentro do homem subterrâneo, um espaço livre e indiferente que o mal pode inundar.”

    […] “O individualismo radical do homem subterrâneo o impede de se interessar por causas sociais, por justiça na comunidade etc. Suas objeções surgem do seu sentido de si próprio e esse sentido exclui qualquer ligação com outras pessoas, individualmente ou em grupo, ou com ideias políticas e sociais.”

    Confesso que depois que li este trecho, foi impossível não fazer comparações com a atual situação social e política de nosso país. Eu parei a leitura, fiz um café e aqui estou.

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