O que sobrou foi uma xícara. O que sobrou foi uma xícara que recebe uma sombra clara todos os dias quando são seis da manhã. É sempre uma nuvem que passa pela janela, espantando os pequenos pássaros lá de fora. E a xícara, sobre a mesa vermelha com pés enferrujados, de branca fica cinza por alguns minutos.

    Quando ainda desperto, quando ainda sobrevôo meus pensamentos tentando quebrar o sentindo de que tive bons sonhos, do que é realidade e ilusão, lembro-me imediatamente que a xícara está lá, como se ela me esperasse para ficar cinza. Calço meus chinelos e desço as escadas ainda sonolenta, ainda mal vestida, ainda despenteada. Sinto um cheiro de café, sinto o gelado das paredes com aqueles quadros feios que minha mãe gosta. E a xícara está lá.

    Olho pra ela como se não a visse, como se ela fosse qualquer objeto transparente, translúcido, desinteressante, mas é tudo ilusão porque eu olho, verdadeiramente, como se fosse possível quebrá-la, com se fosse possível com a força do meu pensamento jogá-la contra a janela. E então chega a nuvem e forma aquela sombra. Aquela sombra maldita que a deixa tão mais sólida, tão mais densa, tão mais você.

    Nesses longos minutos de sombra na xícara é como se eu também recebesse toda aquela sombra, como se eu, nuvem tenra, de repente fosse nuvem robusta (coisa que eu não sou). E assim, quando é, sinto ser possível mover uma tempestade, sinto ser possível controlar raios, trovões, relampagos, você.

    Sento na cadeira velha, aquela que continua a machucar minhas costas. Sento na cadeira velha em direção à xícara. Eu poderia escolher outro lugar à mesa, mas não consigo, não devo, ou é alguma coisa que manda em mim e eu obedeço. Sente-se de frente para xícara, sussurra em meus ouvidos.

    Se fosse xícara gente. Se fosse você xícara. Humano, carne e sangue, pequena, frágil, sem sentido. Talvez se sentisse bem por ser xícara, por ser humano, por receber uma pequena sensação do que é a vida (a sombra e a luz) e contentar-se com isso, apenas com isso.

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    7 Comentários

    1. Um dos teus melhores lampejos literários, Fran. 🙂 Engraçado que tenho um problema com uma cadeira na cozinha, na qual sento desde sempre, e não saio de lá, mesmo que às vezes me incomode. A xícara nos observa com seus contrastes, e nós a observamos. Gostei um tanto desse!

      😉

    2. Da mesma forma como você sempre se senta de frente para a axícara, ela sempre espera a sobra para sentir a vida. É recíproco.

      Às vezes a vida se origina das sombras.

      Beijos Fran!

    3. Fran, essa xícara eu bem conheço, por mais que ignore, vai estar sempre lá, até o dia em que colocar a sombra para correr e iluminar a sala toda. Melhor mesmo é aceitar que a xícara continua lá e dizer-lhe que, para você, tanto faz, tanto fez rsrsrs. Psicólogo acha que tudo é projeção kkkkkk

    4. mariza ferreira on

      Na verdade uma xicara para ser bela tem que passar pelo fogo mais alto no forno para queimar bem o barro,
      pois sem isso ela não se torna de qualidade. Assim, somos nós temos que passar por lutas, pelo vale, pelo fogo, muitas vezes desespero. Mas isso nos traz experiências em saber lidar com as adversidades.
      Sempre que passo por lutas me lembro que ela passou. Então sei que nos momentos de luta que passo é para me tornar uma linda xicara de porcelana. E veja a utilidade da sua xicara está sempre lá com vc, te fazendo companhia, são recíprocas. Sem duvidas duas xicaras belíssimas.

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